Parentes e processos: o vínculo de ministros do STF com advogados

Fonte: Nexo Jornal

O Supremo Tribunal Federal derrubou na segunda-feira (21) um dispositivo do Código de Processo Civil que buscava combater o tráfico de influência na Justiça brasileira ao endurecer os impedimentos a juízes de julgarem processos que podem favorecer seus familiares atuantes na advocacia.

Tomada por 7 votos a 4, a decisão considerou inconstitucional a regra que proibia um juiz de atuar em processos em que uma das partes fosse cliente de escritório de advocacia de cônjuge, companheiro ou parente próximo (até terceiro grau) dele, mesmo que, naquele processo específico, a pessoa estivesse representada por outro escritório.

Neste texto, o Nexo explica os argumentos que fundamentaram o julgamento, mostra de que forma isso atinge os ministros do Supremo e traz análises de especialistas sobre a questão. 

Os porquês do tribunal

Até 2015, o Código de Processo Civil determinava que um juiz seria considerado impedido de julgar uma causa, entre outros motivos, se ali estivesse atuando como advogado “o seu cônjuge ou qualquer parente seu, consanguíneo ou afim, em linha reta; ou na linha colateral até o segundo grau”. 

Mas o novo código, promulgado naquele ano, ampliou essa limitação para impedir a atuação do magistrado em qualquer caso em que uma das partes for cliente de escritório ligado ao círculo familiar do julgador, mesmo que em processo sobre questão totalmente distinta. 

O objetivo era inibir que empresas negociem apoio lobista com filhos ou cônjuges dos ministros responsáveis por seus casos, mas consigam camuflar o esquema contratando oficialmente escritórios diversos dos deles para atuar na causa. 

“Ministro ganha muito pouco, os advogados de grandes escritórios ganham muito mais. Naturalmente, existe uma divisão familiar (https://www.youtube.com/watch?v=www6HzFW 7c) . A mulher fica com o poder econômico no escritório de advocacia, e o marido, com o poder político dentro do poder Judiciário. Ganham muito e têm o poder na mão. Isso é um acasalamento perfeito, que rende muito dinheiro”. 

Foi isso o que afirmou Eliana Calmon, ministra aposentada do STJ e ex-corregedora nacional de Justiça, em entrevista ao programa Papo Antagonista transmitido na segunda-feira (21). Para ela, a regra mais rígida para inibir o relacionamento indevido entre advocacia e julgadores era constitucional e derrubá-la foi um “grande sacrilégio”. 

A AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), no entanto, foi ao Supremo em 2018 para pedir que essa regra fosse declarada inconstitucional. A associação alegou ser “impossível” a um juiz aferir sempre quais são todos os escritórios de advocacia com que as partes de um processo mantêm vínculos. Grandes empresas, por exemplo, costumam ter contratos com várias bancas, para diferentes assuntos. 

Relator do caso, Edson Fachin votou, ainda em 2020, pelo desprovimento do pedido da associação. Depois disso o julgamento ficou suspenso por três anos, por um pedido de vista (mais tempo de análise) feito por Gilmar Mendes. 

Ao devolver o caso para ser julgado em meados de 2023, Gilmar Mendes encontrou apoio da maioria do tribunal, inclusive dos ministros que passaram a compor o plenário após a suspensão do julgamento: Kassio Nunes Marques e André Mendonça, nomeados pelo ex presidente Jair Bolsonaro, e Cristiano Zanin, uma nomeação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 

Cármen Lúcia, Rosa Weber e Luís Roberto Barroso, ele com algumas ressalvas (https://www.migalhas.com.br/arquivos/2023/8/3E5AAC0F1B5E51_5062978.pdf), votaram juntamente com Fachin, que considerou ser a regra justa e exequível. 

O Código de Ética e Disciplina da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) proíbe a publicidade de lista de clientes. Fachin destacou, porém, que “o dispositivo distribui cargas de deveres não apenas ao juiz, mas a todos os sujeitos processuais”. Isto é, basta ao juiz questionar as partes se tiver dúvida sobre a questão, ficando elas responsáveis por responderem de boa-fé. 

“Cabe ao juiz não apenas confiar no dever inescusável de cooperação das partes, para o qual o advogado é um profissional indispensável (…), mas também, sempre que houver dúvida razoável, solicitar às partes (migalhas.pdf) expressa manifestação sobre o ponto” 

Edson Fachin 
ministro do Supremo, em voto proferido em 2020 

A PGR (Procuradoria-Geral da República), cúpula do Ministério Público Federal, e a AGU (Advocacia-Geral da União), que representa o governo federal, também defenderam a manutenção do impedimento mais rigoroso. 

Mas prevaleceu a divergência aberta por Gilmar Mendes, acompanhado por Dias Toffoli, Luiz Fux, Alexandre de Moraes, além de Kassio Nunes, Mendonça e Zanin. 

Para eles, é suficiente o dispositivo que impede juízes de ficarem responsáveis por casos nos quais algum parente deles até terceiro grau atue como advogado, defensor público ou membro do Ministério Público — regra que continua valendo independentemente da derrubada da regra mais rígida. 

Com o julgamento feito no plenário virtual, em que os ministros não debatem, mas somente depositam seus votos, parte deles apenas apoiou a divergência 

(https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/votos-ministros-stf julgamento-impedimento-clientes-escritorios-parentes/) . Veja a seguir os argumentos usados por quem apresentou justificativas para os votos. 

Contra o impedimento
MEIOS DE AFERIÇÃO 

Segundo Gilmar Mendes, os juízes não têm meios objetivos  (https://www.migalhas.com.br/arquivos/2023/8/BF5B1F3E43EBE9_5765269.pdf) de aferir a existência de vínculos das partes com escritórios de advocacia de parentes seus, dependendo de informações trazidas ao juiz por terceiros. “O fato é que a lei simplesmente previu a causa de impedimento, sem dar ao juiz o poder ou os meios para pesquisar a carteira de clientes do escritório de seu familiar”, alegou o ministro. 

ESTRATÉGIA PROCESSUAL 

O ministro também apontou que a regra em questão acaba dando às partes a possibilidade de burlar o chamado princípio do juiz natural, pelo qual as ações apresentadas à Justiça são distribuídas por regras objetivas e independentes das vontades das partes ou dos julgadores. Segundo ele, alguém poderia ter contratos com escritórios de advocacia justamente para evitar que determinados juízes (ou ministros) ficassem responsáveis pelos seus casos. 

TRIBUNAIS SUPERIORES 

Gilmar Mendes ressaltou ainda que, nos tribunais superiores, como o STJ (Superior Tribunal de Justiça) e o Supremo, as decisões fixam precedentes para outros julgamentos, sendo importante que todos os ministros participem dos julgamentos. “Prevalece o interesse coletivo de que o precedente formado represente a opinião da corte, não a opinião de uma maioria eventual”, escreveu. 

ATIVIDADE ADVOCATÍCIA 

Cristiano Zanin procurou demonstrar que a regra em questão discriminaria determinados escritórios. Argumentou também que “impedir o parente do magistrado de atuar como advogado, além de ser juridicamente impossível, restringe as oportunidades de terceiro, em afronta à liberdade de iniciativa e ao direito ao trabalho e à subsistência (https://www.migalhas.com.br/arquivos/2023/8/3FCC00D0693 07D_5842679.pdf) ”. 

Os ministros e os escritórios 

Diversos ministros do Supremo têm familiares na advocacia. É o caso, por exemplo, de Fachin e Barroso (https://www.poder360.com.br/justica/7-ministros-do-stf-tem-parentes-na advocacia/), que votaram por manter o impedimento ampliado na legislação. 

Já entre os ministros que votaram contra o impedimento e têm esposa ou filho advogados estão: 

Gilmar Mendes, cuja esposa, Guiomar Feitosa Mendes, é sócia do escritório Sergio Bermudes Advogados 

Alexandre de Moraes, que é casado com a advogada Viviane Barci de Moraes, também sócia de escritório de advocacia 

Luiz Fux, que tem filho advogado, Rodrigo Fux, atuando em escritório que leva o sobrenome da família (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/fux-julga-no-supremo processos-de-empresas-defendidas-pelo-filho-em-outra-instancia.shtml

Dias Toffoli, que é casado com a advogada Roberta Maria Rangel, que se tornou sócia do Warde Advogados (https://crusoe.com.br/diario/mulher de-toffoli-formaliza-sociedade-em-banca-que-atua-em-disputas bilionarias/) em 2021 

Cristiano Zanin, que teve como sócia, antes de ele ir para o Supremo, a advogada Valeska Teixeira Zanin Martins, sua esposa

No caso de Gilmar Mendes, por exemplo, a Procuradoria-Geral da República já questionou a atuação do ministro em casos que tramitaram sob sua relatoria por conta das relações pessoais ali existentes. Os questionamentos, no entanto, não foram analisados (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/08/supremo-arquiva-todos-os-pedidos-de suspeicao-de-ministros-e-viola-regimento.shtml) a tempo pelo plenário do tribunal, antes que os processos em questão fossem decididos. 

Um levantamento publicado em 2019 pelo projeto “Supremo em pauta”, da FGV Direito SP, analisou todas as arguições de impedimento — ou de suspeição, que são casos em que a parcialidade se dá de modo mais subjetivo — apresentadas ao tribunal de 1988 a 2018. A conclusão foi de que “os procedimentos são conduzidos com tons de deferência (https://revistades.jur.puc-rio.br/index.php/revistades/article/view/1178) , com violações ao rito e às etapas processuais, sem transparência sobre os fatos e argumentações jurídicas para afastamento ou manutenção do ministro no caso”. 

Gilmar Mendes chegou a atuar, por exemplo, em casos penais contra Jacob Barata Filho, conhecido no Rio de Janeiro como “Rei do Ônibus”. Decisões do ministro tiraram o empresário (https://g1.globo.com/politica/noticia/gilmar-mendes-manda-soltar-jacob-barata-filho-e lelis-teixeira.ghtml) do ramo dos transportes da cadeia. 

O então procurador-geral Rodrigo Janot alegou não apenas a existência de uma série de relações pessoais entre o ministro e Barata Filho, mas também o fato de que o escritório de que a esposa de Gilmar Mendes é sócia tinha interesses na causa 

(https://www.migalhas.com.br/quentes/264085/pgr-pede-suspeicao-de-gilmar-mendes-nos hcs-de-jacob-barata-filho-e-lelis-teixeira) . O ministro, por sua vez, negou o impedimento (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/08/supremo-arquiva-todos-os-pedidos-de suspeicao-de-ministros-e-viola-regimento.shtml) , disse que já havia negado pedidos feitos no caso e afirmou que a intenção de Janot era “difamatória”. 

As relações familiares também cruzam casos que tramitam no STJ (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/fux-julga-no-supremo-processos-de empresas-defendidas-pelo-filho-em-outra-instancia.shtml) . Por lá, dois filhos do ministro João Otávio de Noronha, Anna Carolina e Otávio, mudaram inclusive o perfil (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/07/com-pai-na-presidencia-filhos-de-noronha intensificam-advocacia-penal-no-stj.shtml) dos casos em que atuam perante o tribunal após a posse do ministro como presidente da corte em 2018, mostrou reportagem do jornal Folha de S.Paulo. 

Ao assumir a presidência, Noronha assumiu também o comando da corte especial (https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/Regimento/article/view/214/3913) do tribunal, que julga os casos penais contra autoridades com foro privilegiado. 

Antes, os dois advogados tinham como foco temas ligados às áreas civil e pública do direito. Depois, passaram a fazer a defesa penal de pessoas investigadas em grandes operações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. 

Segundo a Folha, ministros do STJ relataram constrangimento para decidir sobre ações em que os dois Noronhas figuram como advogados. 

As regras de impedimento sob análise

Professor de direito constitucional da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e da UnB (Universidade de Brasília), Miguel Godoy discorda da decisão do Supremo, que foi baseada, segundo ele, em argumentos fracos. 

Para Godoy, o fim da regra mais restritiva de impedimento “compromete o fundamento de legitimidade do Poder Judiciário em geral e dos juízes em particular, a imparcialidade”, além de “vitaminar uma prática” que, segundo ele, corrói a autoridade do próprio Supremo. 

“A regra [derrubada pela decisão do Supremo] é em tudo proporcional, justamente porque estabelece critério objetivo de garantia da imparcialidade do juiz que vai julgar causa de cliente do escritório de pessoas diretamente ligadas ao magistrado por laços de sangue”, afirmou Godoy ao Nexo

Gerente do Centro de Conhecimento Anticorrupção da organização Transparência Internacional Brasil, Guilherme France defendeu no podcast O Assunto, do site G1, que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) poderia criar mecanismos para que os próprios juízes pudessem consultar (https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/video/guilherme-france-em cidades-menores-serao-necessarios-rearranjos-institucionais-11883121.ghtml) a que escritórios de advocacia as partes estão vinculadas. 

France afirmou, porém, que os processos atualmente são eletrônicos, o já que facilita o cruzamento de dados sobre os vínculos das partes com advogados. 

Nesse sentido, Godoy destacou ao Nexo que juízes e ministros, “em seu foro íntimo, até podem ser imparciais, mas, mais do que isso, precisam parecer imparciais”. 

Segundo o professor, “é curioso que a impugnação venha da AMB e ganhe eco justamente no Supremo Tribunal Federal”. “Ou seja, os mais interessados em resguardar a sua imagem de 

imparcialidade são os primeiros a acabarem com ela”, disse ele. Pedro Heitor Barros Geraldo, professor e vice-diretor do Instituto de Estudos Comparados em 

Administração de Conflitos da UFF (Universidade Federal Fluminense), também considera que a decisão do tribunal “reproduz uma dificuldade do Poder Judiciário em construir condições de julgamento imparciais”. 

Para ele, o impedimento agora derrubado “limitava as vantagens daqueles que têm familiares dentro dos tribunais”. Vantagens essas que, conforme o professor afirmou ao Nexo, contrastam com “o ideal de um mercado profissional em que o mérito está no trabalho e na expertise dos profissionais”. 

Geraldo destacou que “no código de organização judiciária francês, há uma regra similar para a recusa do juiz se ele ou seu cônjuge é parente ou aliado de uma das partes ou seu cônjuge até o quarto grau inclusive”. Para ele, entre outros fatores — como decisões colegiadas e preocupadas em explicar razões jurídicas para o público —, isso ajuda a produzir um sistema mais apto a “resguardar quem e como se julga”. 

Além do acesso a juízes pelo parentesco, o professor da UFF acrescentou que, no Brasil, “a relação entre advogados e juízes é pouco regulada, seja porque os advogados podem se entrevistar particularmente com julgadores sem a presença de outra parte para pedir decisões — uma fonte constante de conflitos já que é uma prerrogativa da advocacia; seja porque não há uma quarentena para juízes que seja capaz de evitar as relações privilegiadas com seus colegas quando deixam o cargo”. 

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