Como reação aos recentes debates realizados pelo STF, como a não adoção da tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas (RE 1017365/SC), o debate sobre a descriminalização do porte de drogas para uso próprio (RE 635659/SP) e o voto da ministra Rosa Weber pela descriminalização do aborto até 12 semanas (ADPF 442), membros do Congresso Nacional voltaram a se movimentar para dar andamento à PEC do Equilíbrio entre os Poderes.
A PEC do Equilíbrio entre os Poderes tem um único artigo e busca autorizar o Congresso Nacional a suspender, por decisão de três quintos dos membros da Câmara e do Senado, em dois turnos de votação, as decisões do STF que tenham transitado em julgado e que extrapolem os limites constitucionais. Ou seja, na prática, os proponentes da medida querem aprovar uma PEC que permita ao Parlamento derrubar decisões do Supremo de que os parlamentares discordem para que eles próprios deem a última palavra sobre o significado da Constituição.
A PEC é completamente inconstitucional e antidemocrática, já que viola a separação entre os Poderes, viola direito fundamental individual e parece tentar definir e cristalizar uma palavra final sobre o significado da Constituição.
Em primeiro lugar, a PEC do Equilíbrio entre os Poderes é materialmente inconstitucional, porque infringe justamente a cláusula pétrea da separação de Poderes (art. 60, § 4°, III, CF/88). Ao estabelecer que o exercício jurisdicional final do STF fica condicionado à concordância do Congresso (ou sob o risco perene de invalidação por parte deste), a PEC retira um freio do Poder Judiciário aos excessos do Parlamento.
Tentativas de submeter Cortes Constitucionais ou Supremas Cortes aos poderes eleitos não são novas e nem mesmo exclusividade brasileira. Para nos atermos a um caso atual, este é o caminho que o governo de Benjamin Netanyahu vem patrocinando no amplo projeto de reforma judicial que tem mobilizado setores diversos da sociedade israelense em protestos sem precedentes. Dentre as leis propostas, está justamente uma que confere ao Congresso de Israel (Knesset) o poder de revisar as decisões da Suprema Corte, sob o argumento principal de conter uma invasão de competência parlamentar por parte dos magistrados.
É inegável que medidas desse quilate comprometem o sistema de freios e contrapesos que está na base da arquitetura das democracias constitucionais na contemporaneidade. Ao dar ao Congresso a posição soberana e definitiva sobre o que decide o STF, a PEC desequilibra a relação entre Legislativo e Judiciário e constitui violação direta e imediata ao disposto na Constituição no art. 60, § 4°, III.
Mas a PEC do Equilíbrio entre os Poderes também é materialmente inconstitucional porque viola a cláusula pétrea dos direitos individuais ao mitigar a coisa julgada (art. 60, § 4°, IV, CF/88). A coisa julgada consiste na imutabilidade de uma decisão não mais sujeita a recurso. Trata-se de direito individual da pessoa beneficiada por essa decisão, e não está mais sujeita a alteração, nem mesmo por lei.
Não à toa, a Constituição de 1988 dispôs expressamente, no art. 5º, XXXVI, que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Uma PEC não pode pretender modificar uma decisão judicial que já fez coisa julgada, submetendo essa imutabilidade da decisão à livre apreciação do Congresso Nacional. Isso é não apenas desconsiderar a competência decisória do Poder Judiciário e do STF, mas também tornar um direito fundamental de pessoas que tenham coisa julgada em seu benefício dependente das maiorias parlamentares de turno. A violação é frontal à Constituição e perigosa para os cidadãos.
Outro ponto a considerar a respeito da PEC é que a separação entre os Poderes não implica uma divisão estrita de funções, já que, a despeito de aqueles terem as suas funções primordiais, também exercem outras de forma excepcional. O equilíbrio está justamente nas interseções de exercício dessas funções por cada um dos Poderes. Se é certo que o Legislativo faz as leis, que o Executivo as aplica por meio de políticas públicas e que o Judiciário as aplica aos casos concretos em que haja conflitos de interesses, também é assente no nosso modelo de democracia constitucional que o Judiciário, em especial o STF, controla a validade dessas leis editadas pelo Congresso quando faz juízo de constitucionalidade (sabe-se que há outros modelos, como o de controle fraco da Nova Zelândia ou a notwithstanding clause do art. 33 da carta de direitos do Canadá, por exemplo). Essa relação muitas vezes é conflitiva, já que existem diferentes interpretações possíveis sobre a constitucionalidade da lei.
No nosso desenho constitucional de 1988, optamos por conferir ao STF a palavra final sobre a constitucionalidade das leis e atos normativos. Contudo, é fundamental ter em mente que a palavra final sobre a validade de uma lei não é a última palavra sobre o significado da Constituição, pois o controle judicial de constitucionalidade das leis não importa a exclusão da atividade interpretativa dos demais Poderes, das instituições e do próprio povo. Ao contrário, o Poder Judiciário, ou o STF, é apenas mais um ator nessa tarefa de interpretação da Constituição, e o exercício da sua competência é mais um elemento a ser levado em conta na definição do conteúdo e do alcance da Constituição.
Não à toa, é possível haver reação legislativa do Congresso às decisões do STF, já que Câmara e/ou Senado podem propor Emenda à Constituição que supere o entendimento adotado pela Corte (como se deu com a Emenda Constitucional 96/2017, resposta à decisão que o STF havia proferido na ADI 4983), podem editar uma lei ordinária que aponte novos argumentos e razões fáticas para mostrar ao STF que ele se equivocou[1]. Sempre haverá um desacordo moral profundo na sociedade[2], e é por isso que não se podem admitir interdições ao debate.
Dessa forma, é difícil dar respostas últimas, absolutas e imodificáveis, já que as decisões judiciais são sempre contingentes, precárias e não podem se pretender absolutamente corretas e imutáveis. Isso não significa que o Congresso possa querer tomar para si a última palavra sobre a Constituição. A reação expressa pela PEC do Equilíbrio entre os Poderes não é para confrontar um entendimento específico do STF (o que seria legítimo), ou para superar um tema decidido pelo tribunal, mas para permitir que o Congresso controle qualquer decisão do Supremo. Ao buscar tomar para si o poder de dar sempre a última palavra sobre a Constituição, parte dos parlamentares caminha sobre o terreno do juridicamente inadequado e do democraticamente indesejável.
Como nota final, é necessário destacar que é verdade que o STF pode errar (e efetivamente erra várias vezes), uma vez que nenhuma instituição é infalível. A nossa Constituição previu mecanismos exatamente para corrigir esse tipo de erro. Trata-se de mecanismos internos (com medidas processuais) e externos (por atuação reversiva dos outros Poderes).
O que não se pode é usar um mecanismo externo – a legitimidade para propor e aprovar uma PEC – a fim de esvaziar a competência decisória do Supremo e fortalecer o Congresso em demasia. A interpretação e aplicação da Constituição, ao fim e ao cabo, é uma tarefa compartilhada entre os Poderes, as instituições e entre eles e o povo.
Essa disputa que uma parte do Parlamento busca promover com o Supremo não é saudável, pois não fomenta uma ação conjunta, coordenada e colaborativa entre as instituições na definição do que é a Constituição; ao contrário, compreende-a como uma disputa (e não um diálogo) sobre quem deve ter a última palavra acerca do texto constitucional. Por isso, afirma-se que a PEC do Equilíbrio entre os Poderes é flagrantemente inconstitucional, já que fere a separação de Poderes, viola direito fundamental individual (coisa julgada) e pretende afirmar o monopólio parlamentar da Constituição, que não pode ser tomada como sua por ninguém.
[1] GODOY, Miguel Gualano de. Devolver a Constituição ao povo: críticas à supremacia judicial e diálogos institucionais. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2017.
[2] WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. Oxford: Clarendon Press, 1999. p. 268.