Fonte: Folha de S. Paulo
O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) André Mendonça representou o governo Jair Bolsonaro no processo do marco temporal, que está em julgamento na Corte, quando chefiava a AGU (Advocacia-Geral da União). Nos autos, ele defendeu a tese que restringe as demarcações de terras indígenas.
O julgamento do marco temporal foi retomado no último dia 7, mas foi novamente paralisado após o ministro pedir vista, ou seja, mais tempo para análise. Com isso, Mendonça ganhou prazo de 90 dias (que devem ser somados ao recesso do Judiciário, em julho) para devolver a ação ao plenário.
Até agora, o placar tem dois votos contrários à tese, de Edson Fachin e Alexandre de Moraes, e um favorável, de Kassio Nunes Marques.
Membros de organizações que acompanham o caso criticam que o ministro não tenha declarado a si mesmo impedido de julgá-lo e veem o pedido de vista como tentativa de atrasar a decisão.
Mendonça foi procurado pela reportagem, por meio de seu gabinete, para comentar as críticas, mas não respondeu até a publicação.
Na ação, o STF analisa a constitucionalidade da tese do marco temporal, que afirma que a demarcação de terras indígenas deve respeitar a área ocupada pelos povos até a promulgação da Constituição Federal, em outubro de 1988. Assim, povos que não estivessem em suas terras até a data ou não tivessem litígio em aberto à época não poderiam reivindicá-las.
Na visão de indígenas, a tese valida invasões. Já ruralistas defendem que a determinação serviria para resolver disputas por terra e daria segurança jurídica e econômica para investimentos no campo.
A posição dos ruralistas também era defendida por Bolsonaro —e foi reproduzida por Mendonça em seu posicionamento como advogado-geral da União na mesma ação que agora é julgada no STF.
Em uma petição assinada por ele, de abril de 2020, o então representante da AGU diz que a Corte já adotou a validade do marco temporal no caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Ele argumenta que ministros do Supremo e a Procuradoria-Geral da República se manifestaram, à época daquela ação, “quanto à necessidade de que o decidido naquele caso concreto fosse aplicado às demais controvérsias relacionadas à demarcação de terra indígena”.
Mendonça chefiou a AGU em duas ocasiões no governo Bolsonaro: de janeiro de 2019 a abril de 2020 (quando assumiu o Ministério da Justiça e Segurança Pública, após a saída de Sérgio Moro) e de março a agosto de 2021 (quando foi indicado ao STF).
Em entrevista ao jornal Gazeta do Povo em 2021, uma semana antes da posse de Mendonça no Supremo, Bolsonaro afirmou que tinha certeza sobre a posição dele a respeito do marco temporal, já que, como advogado-geral da União, tinha trabalhado alinhado ao governo no caso.
“Nós já sabemos que o André vai ser um voto para o nosso lado. Isso não é tráfico de influência, isso é o que nós sabemos dado o comportamento dele”, disse o ex-presidente. Nos quatro anos de mandato, Bolsonaro cumpriu a promessa eleitoral de não demarcar “nem um centímetro” de terras indígenas ou quilombolas.
O Código de Processo Civil não faz referência direta à atuação da AGU nos artigos em que trata do impedimento ou suspeição de um juiz. Especialistas ouvidos pela Folha opinam que, do ponto de vista moral, no entanto, o impedimento existe.
“Deveria haver ao menos o entendimento implícito de que, se [o advogado-geral da União] assinou petições e acompanhou o caso na chefia do órgão, tendo acesso a todo o processo sob a perspectiva de advogado da parte, e defendendo o ideário de um governo absolutamente explícito no propósito de ‘não demarcar um centímetro’, ele estaria impedido”, diz Paula Brasil, constitucionalista e professora de direito da faculdade IDP.
Miguel Godoy, professor de direito constitucional da Universidade Federal do Paraná, explica que o STF entende que a atuação prévia de atuais ministros no cargo de AGU não gera impedimento automático.
“No entanto, esse entendimento do STF é equivocado. Se o STF pretende ser um tribunal imparcial, com ministros imparciais, atuações pretéritas como AGU em favor da União devem, sim, gerar impedimento, porque o AGU representa interesse próprio da União”, avalia.
Questionado, o STF afirmou em nota que as causas de impedimento estão previstas no Código de Processo Civil e “são objetivas”, enquanto as de suspeição são subjetivas. “Eventual suspeição ou impedimento pode ser reconhecida por iniciativa própria do magistrado ou por provocação nos autos”, diz o texto.
Em outro processo, no último dia 6, o ministro Dias Toffoli se declarou impedido por ter atuado no caso quando era advogado-geral da União. Na ação, um grupo de agricultores pede que seja anulada uma portaria que ampliou os limites da Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, do povo xokleng. Essa mesma terra indígena é o alvo do processo do marco temporal.
“A decisão do ministro Dias Toffoli não pode ser considerada um precedente porque não é vinculante, mas mostra boa conduta”, diz Godoy.
Para Rafael Modesto dos Santos, advogado do povo xokleng, a atitude do ministro Mendonça traz frustração.
Juliana de Paula, advogada do ISA (Instituto Socioambiental), que atua como “amicus curiae” (amigo da corte) no processo, vê ainda com preocupação a demora no caso causada pelo pedido de vista, “inviabilizando uma resolução mais rápida da questão que já vem se arrastando há muitos anos no STF”.
“O ministro poderia já apresentar o voto dele e adiantar o passo. Nós estamos cansados de esperar. À medida que o STF não resolve a questão, mais indígenas morrem, já que os conflitos agrários se acirram quando esse julgamento entra na pauta”, reforça Maurício Terena, assessor jurídico da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), que também atua como amigo da corte.
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