Ou o Supremo se emenda, ou pode ser emendado: a solução está nas mãos do STF

Crédito: Pedro França/Agência Senado

1) A aprovação da PEC 8/21 pelo Senado e a reação do STF

O Senado Federal aprovou na última quarta-feira (22) a PEC 8/2021, que veda a concessão de decisões cautelares monocráticas pelos ministros do STF e regula a declaração de inconstitucionalidade.

No dia seguinte, na sessão plenária de quinta-feira (23), o presidente do Supremo, ministro Luís Roberto Barroso, reagiu incisivamente contra a PEC aprovada pelo Senado. Para o ministro Barroso, não há razões para mudança, pois o Supremo tem prestado bom serviço ao país e as mudanças propostas já foram satisfeitas pela Emenda Regimental 58/2022, aprovada no fim do ano passado pelo STF.

O ministro Gilmar Mendes, decano do tribunal, foi ainda mais duro e reagiu enfaticamente dizendo que o Supremo não será intimidado, nem irá se submeter a autoritarismo escamoteado pela representação de maiorias eventuais.

Os discursos deixaram subentendido que o Supremo pode vir a julgar a constitucionalidade da PEC.

O conflito está posto.

De um lado, o Legislativo tramitando PEC que afeta o STF e reforma seu processo decisório. De outro, ministros do Supremo reagindo com veemência para que a reforma não aconteça.

2) A premissa é a defesa do STF, mas a pergunta é: essa PEC é possível?

Uma premissa deve fundamentar todo o debate sobre a PEC aprovada pelo Senado: o que se deve buscar é sempre o aprimoramento institucional do Supremo, a correção das suas disfuncionalidades. Jamais endossar o enfraquecimento do STF ou a sua submissão ao Congresso. Por isso, tratar da PEC não é ser a favor de quem é contra o Supremo. É ser a favor do Supremo, mas do Supremo órgão colegiado, não do Supremo de Onze Ilhas.

Convém então perguntar: pode uma PEC tratar do desenho institucional do STF? Pode afetar seu processo decisório? E quem ganha caso tudo permaneça como está?

É evidente que PEC pode tratar do desenho institucional do Supremo. A Constituição não faz qualquer vedação. Mas, desde que seja para aprimorá-lo, jamais para enfraquecê-lo.

Do mesmo modo, pode inserir na Constituição diretrizes, obrigações e vedações sobre seu processo decisório. Aqui também há de ser para o seu adequado funcionamento, não para o seu esvaziamento. Não é desejável e nem conveniente que a Constituição trate de minúcias do processo decisório do STF. Mas não é proibido.

Em abstrato, portanto, pode uma PEC tratar tanto do desenho institucional do Supremo quanto de seu processo decisório, desde que seja para seu aprimoramento e não para seu enfraquecimento ou esvaziamento. O que vai definir a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma PEC dessa espécie é o seu conteúdo.

Nesse sentido, a PEC 8/21 é pontual e bem clara. Veda decisões cautelares monocráticas; exige decisões colegiadas; impõe prazo de 6 meses para o julgamento do mérito caso seja concedido medida cautelar; define que só caberá cautelar monocrática no recesso, por decisão do presidente do Supremo, devendo a cautelar concedida ser referendada em até 30 dias quando da retomada dos trabalhos.

A PEC trata, assim, de temas que têm sido a marca do Supremo dos últimos anos: um tribunal monocrático, individual, onde personalidade individualista de seus ministros é maior do que o colegiado e o plenário que compõem. A PEC corrige disfuncionalidades e atuações que, há muito tempo, vão contra a Constituição e as leis do processo constitucional.

A PEC aprovada, portanto, trata do tribunal e traz para a Constituição a regulamentação de boa parte do seu processo decisório.

Não precisava ser assim. Não convém que seja assim. Mas o Supremo colaborou para que fosse necessário ser assim.

Tratar do STF, do seu desenho institucional e do seu processo decisório não é inconstitucional e nem o mérito da PEC 8/21 parece ser inconstitucional.

É preciso destacar que a PEC aprovada pelo Senado em tudo se diferencia, por exemplo, da PEC chamada “PEC do equilíbrio entre os Poderes”, que busca submeter a eficácia das decisões do Supremo à prévia aprovação do Congresso. Esta PEC, sim, enfraquece o Supremo, fortalece desmedidamente o Legislativo, desequilibra a separação de Poderes e, portanto, é inconstitucional.

Emenda Regimental 58/2022 do Supremo foi uma ótima iniciativa da ministra Rosa Weber que, de fato, minimizou alguns desses problemas. Mas nem ela vem sendo cumprida à risca pelo Supremo. Ainda há cautelares monocráticas vigentes, há mais de dez anos, suspendendo decisões majoritárias relevantíssimas para o país. A suspensão da Emenda Constitucional 73/2013, que reorganizou a Justiça Federal e criou novos Tribunais Regionais Federais, é um exemplo. A decisão que suspendeu a lei que previa a repartição dos royalties do pré-sal é outro. A Emenda Regimental determinou que todos esses casos fossem levados a referendo. Mas eles não foram referendados. Há outros casos ainda.

Processos que dormitavam há anos em vistas, agora, pela Emenda Regimental 58, voltam a estar automaticamente liberados para julgamento. Mas boa parte deles segue sem ser julgada. Ou seja, o Supremo não vem cumprindo com rigor a Emenda Regimental que editou há menos de um ano.

Daí a PEC 8/21 ter o resultado que teve no Senado: ser aprovada. O resultado realmente chama a atenção, mas não impressiona.

Caso o reclamo dos ministros do Supremo seja ouvido, caso a PEC estacione na Câmara e lá dormite, ou mesmo caso seja reprovada, fica a pergunta: quem ganha caso tudo permaneça como está no Supremo?

Certamente todos perdem.

O Supremo porque se mantém como uma instituição que se permite ser um tribunal de solistas[1],  que quando se emenda demora a cumprir o emendado. E também todos nós, que ficamos à espera de um Supremo que deveria e poderia ser exemplar em sua força institucional e colegiada e exemplo de respeito à Constituição e às regras do processo constitucional que continuam, no entanto, sendo dribladas.

3) Rotas de saída: a solução está nas mãos do próprio STF

Mas há tempo e chance para o Supremo. E é preciso dizer que fazemos estes alertas e reclamos porque estamos com ele e por ele, porque acreditamos na sua missão de guarda da Constituição, na sua importância institucional e na sua função jurisdicional.

Se a PEC é tão ruim como parece aos ministros do STF, que eles possam se valer deste momento para cumprirem a Emenda Regimental 58 que editaram, julgar todas as cautelares pendentes de referendo, inserir no calendário de julgamento os processos que dormitaram em vistas e que merecem ser julgados definitivamente.

Esta é ainda uma ótima oportunidade para o Supremo reagir à altura e retomar, sem passo atrás, a sua institucionalidade colegiada e também uma postura de imparcialidade, com distância da política ordinária, sem interferência no varejo dos conflitos e interesses.

Uma Suprema Corte vive de sua autoridade. Da fundamentação e coerência dos seus argumentos. Da postura exemplarmente imparcial de seus membros. Se não age assim, a corte corrói sua própria autoridade. E mesmo que não seja emendada agora, pode alimentar novo emendamento no futuro.

Já imaginou chegarmos a 2026 com esse debate pendente?

Ou o Supremo se emenda, ou será emendado.

[1] Hübner Mendes, Conrado. “O projeto de uma corte deliberativa”. In: Adriana Vojvodic; Henrique Motta Pinto; Rodrigo Pagani. (Org.). Jurisdição Constitucional no Brasil. Malheiros, 2012.

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