Ministro deixa pontos em aberto e, para especialistas, deu ordem em processo em que não caberia remoção de conteúdo
As recentes decisões do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes envolvendo ordens de censura em favor do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), apresentam contradições e deixam pontos em aberto.
Moraes determinou na terça-feira (18) a retirada do ar de dois vídeos e de dois textos jornalísticos com afirmações de Jullyene Lins, ex-mulher de Lira, além de postagens no X (ex-Twitter) sobre o parlamentar.
Entre os conteúdos, estava uma entrevista publicada pela Folha no YouTube, na qual ela diz que teria sido agredida pelo parlamentar. O ministro do STF recuou um dia depois e derrubou a censura em relação aos conteúdos jornalísticos.
Ao justificar a mudança de posição, Moraes indicou não saber que a censura havia atingido material jornalístico, embora já tivesse feito menção a veículos de comunicação na primeira decisão.
Além disso, especialistas consultados pela Folha dizem que Moraes atendeu ao pedido de remoção de conteúdo feito pela defesa de Lira num processo em que essa medida não seria juridicamente cabível.
Ele foi feito por meio de uma reclamação ao STF para derrubar a decisão de outro tribunal, sob argumento de que haveria desrespeito a algum entendimento da corte. Para eles, porém, essa solicitação precisaria ter sido endereçada a instâncias inferiores.
Também há crítica de que, embora tenha mandado as plataformas removerem de redes sociais novos conteúdos idênticos, não deixou claro o que seriam eles.
O caso envolve uma ação movida pela Agência Pública contra uma decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal do ano passado que ordenou a remoção de entrevista feita pelo veículo com Jullyene.
A ordem de censura de Moraes atendeu a um pedido do presidente da Câmara para estender uma decisão que ele havia tomado na semana anterior, ordenando ao X que suspendesse um perfil com postagens que estariam acusando Lira de estupro.
A defesa de Lira alegou que as publicações jornalísticas seriam idênticas, apesar de se tratarem de conteúdos distintos.
Ao recuar e determinar a reativação dos links da entrevista da Folha no YouTube e dos links do Terra e do Brasil de Fato, Moraes argumentou que as informações obtidas após a realização dos bloqueios “demonstram que algumas das URLs não podem ser consideradas como pertencentes a um novo movimento em curso, claramente coordenado e orgânico, e nova replicagem, de forma circular, desse mesmíssimo conteúdo ofensivo e inverídico”.
O ministro afirmou que elas correspondem a “veiculações de reportagens jornalísticas que já se encontravam veiculadas anteriormente, sem emissão de juízo de valor”.
A informação de que se tratava de conteúdo de veículos de comunicação, não de postagens em redes sociais, já era citada na ordem impondo censura, posteriormente derrubada.
Conforme narrava Moraes na decisão, a defesa de Lira apontou ter tido conhecimento de que “publicações idênticas, com o mesmo conteúdo objeto da providência cautelar já deferida, foram veiculadas também através da plataforma ‘Youtube’ e pelos veículos de comunicação ‘Terra’ e ‘Brasil de Fato’”.
Para Miguel Godoy, professor de direito constitucional da UnB (Universidade de Brasília) e da UFPR (Universidade Federal do Paraná), com os pedidos de Lira deferidos por Moraes, há uma subversão do tipo de processo em que eles foram apresentados.
“É uma usurpação da reclamação, que é um veículo processual para garantia da liberdade de expressão, e ela passa a ser convertida num processo de imposição de censura. Isso é descabido e completamente equivocado.”
Para Godoy, foi acertado o recuo de Moraes em relação aos conteúdos jornalísticos alvos de sua própria decisão. Ele vê, no entanto, incongruência entre a decisão atual e o fato de o ministro ter sido contrário ao seguimento da reclamação da Agência Pública –que busca suspender censura imposta pelo TJ-DF.
Em julgamento na Primeira Turma em maio, Moraes e os ministros Cristiano Zanin e Luiz Fux votaram para negar recurso do veículo, formando maioria. A análise foi interrompida após pedido de vista (mais tempo de análise) da ministra Cármen Lúcia.
Wallace Corbo, professor da FGV Direito Rio e da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), também aponta que não seria esperada a ampliação de remoção de conteúdo no bojo de reclamação ao Supremo.
“O que é fora do esperado é que o beneficiário da censura ingresse nesse processo e consiga uma medida que amplia a retirada do ar de notícias ou manifestações.”
Ele também aponta contradição entre as recentes decisões de Moraes diante do posicionamento dos ministros quanto ao pleito da Agência Pública contra a decisão do TJ-DF.
Corbo afirma ainda que, pelo fato de o processo correr em segredo de justiça, a falta de mais elementos na fundamentação da decisão, em relação aos posts derrubados em redes sociais, acaba sendo um entrave para o controle da sociedade, tendo em vista que o caso envolve um parlamentar de alto relevo na vida política nacional.
Carlos Affonso Souza, diretor do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade) e professor de direito da Uerj, vê com preocupação a possibilidade de advogados de autoridades passarem a usar como estratégia misturar postagens ofensivas a essas figuras nas redes sociais a conteúdo jornalístico para pleitear remoções.
Ele diz ser preciso que os juízes analisem o conteúdo dos links, não apenas as postagens, para poder diferenciar o que é material jornalístico, algo que parece não ter sido feito na decisão sobre Lira.
Souza também destaca como problemático que Moraes, além de ter determinado a remoção de links específicos, faça uma imposição de que as plataformas devam remover novos conteúdos.
Moraes determina, ao X e ao YouTube, a remoção no prazo máximo de duas horas “de qualquer postagem com conteúdo veiculando matéria idêntica à dos URLs acima mencionados” —pedido que não aparece na decisão como sendo um pleito de Lira.
“À luz da legislação é preciso indicar o local inequívoco do material e não simplesmente mandar os provedores caçarem com o conteúdo recrutada”, diz Souza, citando o Marco Civil da Internet. “Nesse caso específico, nem se sabe que conteúdo idêntico é esse, podendo gerar o efeito de cala a boca com relação a determinado assunto”, diz.